Eles conseguiram!
Faz tempo que escrevi um livro
(As elites insinceras) no qual analisava a trajetória da atuação das nossas
elites. Uma das conclusões foi a de que são elites que optaram pela esperteza
rasteira, no afã de vantagens imediatas. Se observarmos friamente os nossos
representantes políticos, chegaremos à triste conclusão que a sua maioria é
composta por pessoas absolutamente medíocres, despreparadas para administrar
portarias de condomínios. Ter condições de galgar um cargo público através de
eleição informa apenas que o cidadão é bom em ganhar uma eleição, o seu
desempenho posterior é que nos dirá se ele tem talento, competência,
conhecimentos e disposição de servir e defender os interesses públicos (povo e
nação). Normalmente, no país, o caminho mais fácil para ganhar uma eleição é
aquele que mistura: dinheiro, espertezas, falsas promessas e compra de votos.
Isso informa que o eleito tem dinheiro (normalmente público), é esperto,
mentiroso e desonesto. Mais nada.
Mas a presença desse monturo
humano nos cargos políticos é fundamental para que os caminhos da corrupção e
da indolência sejam mais facilmente azeitados. Pústulas ambulantes, sem nenhum
estofo moral, são mais fáceis de subornar e controlar com alguns farelos atirados
com desdém.
O que tem acontecido no país é
uma sucessão de descalabros e perversidades contra a cidadania, onde o poder
público – cavalgando o uso do poder de coerção – tem desenvolvido uma
musculatura possante em incompetência e arrogância. A incompetência se dá com a
tolerância para com a indolência, com a inapetência para o cumprimento das
tarefas necessárias, pelas quais o povo paga e o poder público se arroga
responsável. O povo (historicamente) vem pagando e o poder público não cumpre
minimamente com aquilo que é de sua obrigação.
Este estado de coisas veio sendo
empurrado com a barriga por anos, décadas, século até chegar ao ponto de o povo
ir para as ruas, uma das tarefas mais difíceis de se cumprir. O que levou o
povo às ruas, neste momento, foi a tradicional incompetência das nossas elites,
com seus recortes de arrogância e descaso para com o povo deste país.
Um aspecto interessante na
presente onda de manifestações é o fato de não se saber exatamente qual a
reivindicação. Nenhuma específica, pois são inúmeras: corrupção, saúde,
educação, segurança, etc. No fundo o que se quer é um país decente que atenda
minimamente as necessidades da população e que a respeite.
O cidadão comum está cercado por
arrogância, injustiças e absurdos por todos os lados. Para tocar a sua vidinha
pacata é obrigado a engolir sapos desnecessários quando se depara com o poder
público. Isso vai desde o guarda de trânsito, passando por leis absurdas, até à
corrupção generalizada na cúpula do poder.
No meio a tantas reivindicações,
vamos tomar como exemplo, a questão do precatório (que não é nem ventilada e
nem dá mídia) para vermos como a banda toca pelo lado do governo e como o pau
desce sobre o lombo do cidadão.
A principal estrutura de um
Estado moderno é a lei. É nela que o Estado se organiza, se legitima e atua.
Dessa forma, nos parece lógico que o Estado seja o mais interessado no
fortalecimento da lei ou pelo menos da sua manutenção. No Brasil isso não
acontece e o nosso Estado é o primeiro a tentar desmoralizar a Lei, contribuindo
substancialmente para a insegurança jurídica.
Nos países modernos, quando o
Estado perde uma demanda na justiça, ninguém discute, a sentença é prontamente
cumprida, pois faz parte da segurança jurídica não discutir sentença transitada
em julgado. No Brasil, por esperteza anã, quanto os entes públicos perdem suas
ações na justiça, resolveu-se não cumprir sentenças definitivas. Sob um
artifício jurídico, criou-se a figura jurídica do precatório que, num primeiro
momento tinha a desculpa de que o Poder Público necessitava de tempo para se
organizar, ou seja, colocaria o valor devido no orçamento do ano seguinte e
pagaria o determinado por decisão imperativa e irrecorrível. Isto estava
estabelecido em lei, mas os nossos executivos (presidência, governadores,
prefeitos, autarquias, etc.) simplesmente não cumpriram a lei e nada aconteceu,
nenhuma punição foi registrada. Com o passar do tempo, estas dívidas foram se
acumulando e os nossos representantes aprovaram uma lei que estendia o prazo de
pagamento para 10 anos. Observe que uma dívida a ser paga imediatamente por
imperativo legal foi postergada para 10 anos. Mesmo assim, os precatórios não
foram pagos e ninguém foi punido. O montante da dívida cresceu de forma
assustadora e o nosso Congresso aprovou uma PEC do Calote, que estendia os
pagamentos por 15 anos. Nessa toada, existia a expectativa de se aprovar a PEC
do Supercalote e estender o prazo por 30 ou 40 anos... Por que não? Qual a
diferença se o exercício é cuspir na Lei?
Este ano, após tantos anos de
humilhações à cidadania, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a
patranha dos precatórios, mas não informou até agora como a coisa vai ser
decidida e milhões de cidadãos não sabem ainda se receberão o que lhes é devido
em vida.
Conclusão. Essa bandalheira
perdurou por anos a fio, capitaneada pelo Poder Público, e resultou numa dívida
de 94,3 bilhões, sendo que existe mais de um milhão de credores esperando numa
fila esdrúxula e perversa. Ao deixar acontecer tal descalabro jurídico/administrativo,
Estado descurou bisonhamente de duas de suas mais importantes funções:
preservar a lei e diminuir as tensões da sociedade. Pelo contrário, atentou
contra a segurança jurídica e acirrou as tensões sociais.