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quinta-feira, 6 de março de 2014

Um Trem para o Fim do Mundo - Capítulo 1

 homem sempre dominou o mundo. Como se sabe desde o tempo das cavernas. Éramos arrastadas pelos cabelos e fazíamos sexo de quatro como os animais. Verdade? Pouco nos interessa. Sabemos, pois, que atravessamos milênios subservientes e na maioria dos casos servindo às suas necessidades. Vivemos sempre na mais pura obscuridade. Algumas raríssimas exceções destacaram-se eminentemente nas artes, na política, na ciência, mas em geral fomos esposas fiéis, mães dedicadas e exímias donas de casa. O mundo que vivemos é um primor? Pergunto! O domínio do sexo masculino durante toda a existência trouxe qualidade de vida aos seres humanos? O planeta está falido?... O que vocês acham? Os machões erradicaram a miséria, a corrupção, a ganância? Não minhas amigas... Tivemos uma parcela de culpa; porém ínfima, porque nunca tivemos a verdadeira oportunidade. Algumas presidentas e rainhas governando à moda masculina, com opressão e imposição, esqueceram-se que a vida é gerada em seus ventres. Que o alimento sorve de seus seios, que a tolerância e a mansuetude são características do chamado sexo frágil. E as poucas que detiveram o bastão passaram-no aos homens como a conscientizarem-se de sua incapacidade. Minhas amigas..., a hora é agora... Levantar-nos-emos de uma vez por todas ou ficaremos eternamente vendo os homens destruírem o mundo com imposições e atitudes machistas. As portas abrir-se-ão sem dúvida, cabe a nós adentrarmos. Eles já tiveram o seu tempo..., e muito tempo por sinal. Desperdiçaram-no. Demonstraram a incompetência arraigada nos seus músculos, na prepotência de um falo entre as pernas, achando pois que tudo curvar-se-ia diante de sua arrogante masculinidade.
  Dotada de grande beleza e uma inteligência ímpar, Roxane sempre se impôs na vanguarda do pensamento. Destoava das amigas que enfatizavam o penteado, as fofocas e os namoricos. Aos doze anos, no colégio, escreveu um artigo onde o mundo seria governado por mulheres. Uma utopia, um ensaio. Sabia que sociedades radicais e fundamentalistas estariam longe, muito longe de vivenciarem tais mudanças. Mas sabia, contudo, que se a semente não começasse a ser lançada, talvez, centenas ou milhares de anos à frente o mundo seria mera cópia do passado sombrio. Sombrio na visão dos inconformados, mas satisfatório na visão de povos destituídos de liberdade de pensamento. O gene do conformismo passado de pai para filho durante gerações vem de encontro ao que ditadores e tiranos esperam de seus comandados.

  Roxane perdera os pais aos quinze anos de idade. Não aceitou tutela e viveu sozinha no imenso casarão de um bairro nobre. Promovia debates e palestras todos os fins de semana com as amigas. Arregimentou quase trinta moças e fundou A Irmandade da Renovação. A fidelidade, a discrição e o segredo, eram a tônica. Pais, irmãos, namorados, não podiam sequer imaginar a finalidade dos encontros.

  — Roxane..., não será uma luta inglória nossa pretensão?

  Havia razão para Jenifer proferir tal pergunta. Tratava-se da mais recente Irmã a aderir ao grupo e como tal nutria grande dificuldade imaginar uma reviravolta no status quo.

  — Minha cara Irmã – respondeu. – Nossa luta não será um fim em si mesma. Será apenas a semente lançada ao solo para que futuramente alguém inicie a grande colheita.

  Sendo ou não da Irmandade o tratamento e o nível de amizade era o mesmo. Na visão de Roxane um grupo exclusivista e radical tornar-se-ia vulnerável. Assim sendo todas as atividades do dia a dia eram completamente normais, chegando ao ponto de pequenos desentendimentos serem esquecidos ou postergados em prol dos seus ideais. Porém, Laura Anderson, uma das mais antigas – que junto com Mariane e Roxane fundaram a Irmandade –, postava-se bem mais radical. Nem todas, porém, alcançavam a distância de Roxane no que concerne a um projeto contínuo. Impulsivamente pensavam em plantar e imediatamente colher os frutos. Mariane uma morena de cabelos pretos quase na cintura, com olhar misterioso e penetrante – aquela que os rapazes sonhavam e se desmanchavam em elogios. – Monitora de sua classe usava seu poder inato de persuasão para convencer as meninas. E o grupo em apenas dois anos alcançava vinte e oito moças que juraram fidelidade e participavam ativamente.

  Nas reuniões, portanto, o discurso tomava ares impactantes transformando meninas dóceis e comportadas em verdadeiras lutadoras pelo ideal.

  Minhas amigas... Temos consciência de que dificilmente chegaremos a cargos de poder. Muitas talvez alcancem profissões que mesmo extremamente importantes não proporcionem mudanças significativas. Mas prestem atenção... Podem influenciar seus pais, maridos e irmãos. Nosso comprometimento com a causa vai de encontro com o comprometimento pelas filiadas da Irmandade. Nosso interesse não é destruir o homem, nem tomar o seu lugar. Nossa luta é pela igualdade, pela oportunidade de concorrer de igual para igual.”

  Laura levantou-se de sua cadeira e pediu a palavra:

  — Vocês sempre souberam da minha postura radical. Comparo os nossos tempos a uma guerra silenciosa, obscura, e numa guerra você mata ou morre. O sistema nunca se modificará, tenho certeza. Tenho absoluta certeza que nunca darão espaço para as mulheres.

  — Mas no passado conseguimos muita coisa... – assentiu Roxane.

  — No passado... Ah, no passado o mundo era integrado, interligado por conexões virtuais. Sistemas abertos e igualitários influenciavam os governos e as conquistas ideológicas eram implantadas aos poucos. Agora, Roxane, só há um sistema. Não sofre influência de ninguém a não ser de si mesmo. Não há uma sociedade a espelhar-se a não ser em um passado distante. Não há nada lá fora ou se há não sabemos o que é.

  — Há sim, Laura. Lá fora estão os que não se coadunam com o sistema. Talvez por isso não haja necessidade de presídios.

  — E o que é o “lá fora”? Alguém já informou? Um mundo de monstros que devoram os deserdados? Ora pessoal... Proponho uma atitude muito mais concisa, Irmãs. Temos que destruir os homens.

  — Destruir os homens será destruir nossos pais, nossos irmãos.

  — Não, Mariane; quando digo destruir não quer dizer matar. Destruir no sentido desmoralizá-los, boicotá-los. Não seguirmos suas regras e orientações, não comprarmos em suas lojas. Roubá-los até.

  — Roubá-los? – retrucou Roxane. – Aí estaremos andando para trás. Não é por aí que devemos iniciar uma revolução.

  — Vocês são muito ingênuas, garotas. Enquanto estamos aqui discutindo, gerando filhos, amamentando-os, os homens estão por aí mandando e desmandando. Chegam à noite vomitando arrogância e nós temos obrigação de abrir as pernas para eles.

 Eis que Débora levanta a mão e pede a palavra:

  — Roxane, estou muito assustada. Temo que nos descubram e me mandem para longe de minha família.

  — Então, você prefere o comodismo da subserviência?

  — Talvez. Será muito difícil convencer milhares de mulheres dóceis, filhas amáveis e esposas fiéis de uma hora para outra levantarem bandeiras contra a masculinidade.

  —Mas não é isso a que nos propomos, Débora.

  — Mas é o que propõe a Irmã Laura.

  —Isso é normal, minha Irmã – aventou Roxane tentando minimizar o efeito das palavras contundentes de Laura. – Em todos os processos existem discordâncias, mas discutiremos tudo à exaustão.

  — Roxane, eu preciso que me entenda. Estou fora!

  Todas as meninas calaram. Era como uma nuvem negra a abater-lhes as aspirações. Um gosto amargo de fel impregnando suas bocas sedentas de idealismo.

  — Vocês não imaginam no que estão se metendo. A sociedade machista, o sistema fascista, esmagará qualquer rebelião.

  — Não, Débora. Você está errada... Não faremos uma rebelião pelas armas e sim pela consciência.

  – Lembrem-se de que os livros de história contam que num passado distante um Messias tentou enfrentar o Império Romano implantando novas formas de agir e pensar. Vocês sabem no que deu!...

  — Você se refere a Jesus Cristo? Ora Débora... Ele conseguiu, sim! Precisou se tornar um mártir, mas conseguiu.

  — E o que vocês pretendem? Tornarem-se mártires?

  —Débora, não existem mais...

  — Eu sei. Há séculos as execuções e os presídios foram extintos, porém eu lhe pergunto... – e a plateia composta de quase trinta adolescentes não se manifestava diante do debate acalorado. – Alguém aí entre vocês – e virou-se para as Irmãs – pode afirmar com clareza para onde são mandados os condenados? Semana passada uma mulher do meu bairro com atitudes voltadas para o lesbianismo desapareceu como por encanto. Nunca mais se ouviu falar dela.

  Jenifer levantou-se prontamente e se fez ouvir:

  — No ano passado uma vizinha saiu para trabalhar e nunca mais apareceu. Seus parentes procuraram-na em vão. Recorreram à polícia e até aos escalões políticos e nada. O boato que correu no bairro é que ela traía o marido. Disseram que havia sido convocada várias vezes para dar depoimentos, até que então...

  — Sumiu para sempre... – asseverou Débora.

  — É, sumiu.

  — Estão vendo, minhas amigas. Todas vocês devem conhecer fatos relacionados a vizinhos e parentes. Estamos aqui na casa de Roxane brincando com fogo.

  — Mas, Débora! Você quer que desistamos do nosso ideal e fiquemos indefinidamente a mercê deste sistema opressor? É o que você pretende?

  — Eu não sei de mais nada, Roxane. Não sei de mais nada.

 — Você não acha que o medo impede mudanças? Não seria hora de nos rebelarmos de uma vez por todas? Se todas as mulheres em cada canto de nosso país levantassem seus bumbuns e clamassem por seus direitos... São séculos de leniência e subserviência ao sexo masculino.

  — Mas, Roxane, o mundo sempre foi assim.

  — Não, Débora. Os livros contam que num dado momento da história, talvez mil anos atrás, as mulheres tiveram igualdade. Conseguiram cargos importantes. Foram presidentas, ministras, governadoras. Presidiram empresas das mais importantes no mundo.

  Você é uma sonhadora, minha Irmã. Tempos tão longínquos que se perderam na poeira da ilusão.

  —Não, não foi ilusão. Foi pura realidade.

  — Realidade? Como as conquistas espaciais, a tecnologia, a democracia? Tudo muito bonito nos livros de história.

 — Mas podem voltar – rebateu Juliete.

  — Pode, Irmã – retrucou Débora virando-se para ela que ocupava duas cadeiras atrás. – Tudo pode voltar... As guerras, as disputas religiosas. Todos os sistemas têm suas falhas e seus acertos. Não pensem que nos tempos antigos tudo era maravilhoso. O que existe hoje pode ser considerado como o somatório de tantos séculos de erros. Estamos afundando cada vez mais na lama da imoralidade.

  —E é para isso que estamos aqui debatendo, Irmã.

  — Minhas amigas... – e pausou como dando um tempo para reflexão. – Meu ideal é o mesmo de vocês, não pensem de outra maneira, mas temo por nossas vidas. Não sei até onde “eles” se manterão alheios às nossas intenções.

  — Há pelo menos dois anos que nos reunimos e nunca aconteceu nada – concluiu Juliete.

  — Por isso mesmo. No princípio não passávamos de meninas mimadas da classe média debatendo ideias. O tempo foi passando e nosso grupo aumentando e tomando forma de rebelião.

  — E como poderiam nos identificar? Você acha que alguém poderia nos trair?

 — Bastaria que um parente ou namorado desconfiasse de nossas reuniões.

  — Está bem, Débora. Não nos alonguemos mais. Proponho uma votação para decidirmos o que fazer. Quem quiser pular fora, como Débora, que o faça agora. As que continuarem terão que ir até o fim, sofram as sanções que sofrerem.

  — Roxane! – interrompeu Jenifer.– Ouvi falar que os condenados são mandados para o fim do mundo.

  —Deixa de bobagens, Jenifer. Fim de mundo... O que é isso? Pessoas que somem, fim de mundo, tudo besteiras.

  — Eu vou com Débora – afirmou. – Estou fora.

  — Mais alguém? – redarguiu Roxane dirigindo-se às demais com veemência.

  O silêncio pairou no pequeno auditório dentro do galpão. Nos fundos do quintal de Roxane, acobertadas por muros de três metros de altura, sentiam-se protegidas; bem, até aquele instante. Até que Débora abrisse os olhos daquele grupo de meninas onde a única intenção era a luta pela igualdade.

  —Não participarei de mais nenhuma reunião, fiquem tranquilas. Nunca sairá de minha boca alguma palavra sobre a Irmandade. Porém se algum dia vocês forem pegas, lembrem-se de que não mais pertenço ao grupo.

  —É uma pena, minha cara, pois não posso mais chamá-la de Irmã. Não a condeno, pois é livre para desistir, mas infelizmente pessoas como você impedem a transformação da sociedade.

  — Desculpem, amigas – e se retirou.

  Débora e Jenifer despediram-se e deixaram silenciosamente a casa de Roxane. A Irmandade acabara de sofrer as primeiras baixas desde quando fora criada. Perplexas e introspectivas olharam a líder como a esperar palavras de consolo. Palavras que corroborassem seus anseios e expurgassem as dúvidas que Débora então havia semeado. Como a pressentir o desejo de explicações, Roxane fala:

  A reunião de hoje está encerrada. As Irmãs que ficaram por livre e espontânea vontade, a partir de agora, estão compromissadas como nosso objetivo. Darão o sangue pela missão independentemente do que possam sofrer. Não estamos aqui discutindo o sexo dos anjos e sim o futuro de Esperanza. O futuro da humanidade. Se querem que tudo continue na mesma, ainda é tempo de desistirem e correrem para o conforto de seus lares e a segurança de seus pais. Discutiremos o enfoque de nossa Irmã Laura para que possamos decidir sobre uma ação mais contundente. Laura presidirá a próxima reunião na quarta-feira à noite e explicitará suasideias radicais

para que debatemo-las.


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